domingo, 23 de fevereiro de 2014

Conto #0007

SÉTIMO PÁSSARO

ROBERTO


O colega de classe que soquei na quarta série por ter me irritado era meu amigo. Se ele era meu amigo, por que eu bati nele? Porque ele era meu amigo. Era.
Depois daquele dia nós não conversamos mais. Deixamos de nós falar diretamente. Tudo por causa de uma redação cujo tema era o nosso futuro.
Ele me xingava. Eu não respondia. Ele falava mal de mim para os outros. Eu não falava nada. Meu silêncio o irritava. E o que me irritou nisso tudo não foi só ele, mas tudo.
Quando cheguei ao meu limite me vi direcionando toda a minha força no meu punho direito direto na cara dele. O golpe fez com que ele caísse. Por pouco não bateu a cabeça. Antes que ele se levantasse para me bater a professora me puxou de lado pelo braço e me repreendeu.
Eu nunca tinha brigado antes. Nunca tinha batido assim em alguém. Também nunca tinha sentido tanta raiva na minha vida.

Deixamos de ser amigos, mas não deixamos de ser colegas de classe. E no ano seguinte deixamos de ser colegas de classe, mas não deixamos de ser vizinhos.
Voltando para casa, lembrando daquela professora que me fez lembrar daquele episódio, eu me lembrei dele.
Ele tinha uma família um tanto complicada. Tinha mãe, mas não tinha pai. A mãe era ausente e quem cuidava mais ou menos dele era a avó. A história que os outros contavam era que a mãe dele era viciada e tinha se envolvido com um traficante. Ele não contava nada disso para gente.
Ele vivia perto da minha casa. Vivia mais na rua do que em sua casa.
Perto de onde morávamos, havia um terreno baldio que nós usávamos para brincar de pega, jogar bola, e inusualmente para observar formigas.
Um dia percebi que quando ele não estava afim de jogar bola ou correr com a turma da rua, ele ficava quieto, sentado num canto e olhando para o chão. Ele pegava uma vareta e ficava riscando a terra. Quando me juntei a ele percebi que ele olhava para uma trilha de formigas. Onde aquelas formigas estavam indo? Onde era o formigueiro delas? Nenhuma dessas perguntas parecia passar pela cabeça dele. Então eu perguntei:
- Por onde essas formigas estão indo?
E ele respondeu:
- Por ali. Aqui, venha.
E eu o segui.
- O formigueiro é aqui.
- E onde elas estão indo?
- Atrás de comida.
- Onde?
- Não sei.
Nós começamos a seguir a trilha das formigas juntos. Era um extenso caminho longe do terreno baldio, ao lado, onde começava um pequeno bosque. Andamos entre as árvores. No caminho mais adiante acabavam as árvores. Havia um terreno com mato meio alto e cupinzeiros. Tínhamos perdido a trilha das formigas.
Eu havia me encontrado novamente no campo dos cupinzeiros. E ali eu o vi com um pedaço de cabo de vassoura na mão. Ele era o tipo de pessoa que estava sempre sozinho fazendo coisas estranhas em lugares abertos. Agora ele estava batendo violentamente com o pedaço de cabo num cupinzeiro. As primeiras batidas pareciam não surtir qualquer dano ao cupinzeiro. Aos poucos ele foi aumentando a agressividade, chegou a berrar. No final conseguiu apenas abrir um pedaço daquele monte. Ele tinha se cansado, tanto fisicamente quanto emocionalmente cansado.
Depois de ficar encarando o cupinzeiro por alguns longos minutos ele deu alguns chutes que quase o fizeram cair para trás. Aí ele começou a olhar o chão e a andar. Caminhava sob o pôr-do-sol.
Não sei se eu deveria ter saído da vista dele. No momento nem tinha pensado naquilo. Quando nos encontrávamos na rua não olhávamos direito um pra cara do outro. Cada um tinha seguido o seu caminho. Cada um estava numa classe diferente, não tínhamos nenhuma razão para nos falarmos.
O que tinha acontecido na vida dele nunca me importou realmente. As coisas pelas quais ele passava, a vida que ele levava. Naquela época eu não pensava sobre nenhuma dessas coisas. Eu pensava que todos levavam a mesma vida normal que eu. Não pensava na história que eles carregavam. Não pensava nos problemas que cada um enfrentava. Não refletia sobre todas essas questões. Não seriamente.
Por causa dele comecei a observar formigas. Se não tivesse ninguém por perto, ninguém conhecido, eu começava a persegui-las com meus olhos. E de repente me deparava com uma formiga perdida. Qual seria seu futuro longe das outras?
Qual seria seu futuro?
Qual seria o futuro que ele queria ter? O que ele queria se tornar? O que estava escrito na redação dele? Alguma coisa que não chamasse atenção. Algo normal, mas com um sucesso extraordinário. Ser jogador de futebol? Mas ele não jogava tão bem, não era um viciado em bola. Um policial talvez? Será que os outros não iriam rir de sua ambição? Será que não começariam a questionar como ele poderia querer ser policial se seu pai provavelmente era um bandido? Ou mesmo começariam a falar da sua mãe? Ele com certeza não gostava que falassem mal da família dele. Eu também não gostaria.
Lembro que ele entrava em brigas por causa daquilo. Ao falarem da família dele, ele já se alterava. Ele descontava sua frustração nos outros? Será isso?
- Ei!
Gritei. Ele parou. Me olhou.
- Que é?
- Você está bem?
- Não.
- O que aconteceu?
- Você viu?
Assenti com a cabeça.
- Não consegui destruir aquele cupinzeiro. Era duro demais. Parecia ser mais fácil...
Eu vi que o corpo dele tinha machucados. Alguns arranhões, marcas de batidas nos braços. Ele jogou o pedaço de cabo no mato e se sentou na guia da calçada. Começou a olhar o asfalto. Um bando de formigas estava atacando um doce derretido.
- Por que observar formigas?
- O quê?
Talvez ele não tivesse consciência daquilo. Apenas começava a olhar.
- Sei lá.
- Penso que as formigas podiam ser pessoas.
- É? Você é esquisito. Ainda pensa em ser pássaro, seu maluco?
- Sim,

ROBERTO
SÉTIMO PÁSSARO
FIM

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