sábado, 1 de fevereiro de 2014

Conto #0006

SEXTO PÁSSARO

SAMANTHA


Uma mulher jovem, de cabelos castanhos, longos e lisos. Silhueta esbelta, rosto delicado, parada agora no corredor olhando surpresa para um único rapaz.
Era a minha professora da quarta série.
O tema era: “O que você quer ser quando crescer?”
Foi ela quem tentou me desmotivar a seguir meu sonho.
- Eu quero ser um pássaro.
- Isso é impossível meu bem.

Ela riu do que eu disse. E todos os outros também porque ela disse que eu não podia me tornar um pássaro. Me julgaram maluco e retardado.
- Você escreveu aqui que queria ser um pássaro para poder voar pelo céu. Você não quis dizer que queria ser um piloto de avião?
- Não. Eu quero ser um pássaro. Com asas. Para poder voar a hora em que eu quiser.
Sem precisar de um avião. Sentir o vento ao redor do corpo. Eu queria ter aquela sensação outra vez, de novo e de novo. Não queria que acabasse e eu me sentisse outra vez preso ao chão.
Ela não me entendia. Talvez nunca tenha voado.
- Isso não é possível. Você é um menino. Não pode ser um pássaro. Você nasceu menino. Tem que se contentar em ser menino.
Ela estava dizendo aquilo agora, mas antes tinha dito que nós podíamos ser o que quiséssemos. Tinha dito que não era para nos conter em nossos sonhos.
O resultado foi que eu levei aquilo a sério.
Eu iria conseguir minhas próprias asas.
E depois de quatro anos eu soube onde ela morava. Ali, naquele pequeno apartamento de número 16 que estava para ser vendido por causa de algum desentendimento com seu companheiro.
Aquele ano escolar foi um tanto complicado. Depois daquela redação fui tachado de “homem-pássaro”. Inúmeras vezes zombaram de mim. Me chamavam de pintinho, galinha, franguinho sem pena...
Ela não ligava. Nem escutava. Fingia que não ouvia.
Afinal ela também concordava.
Era apenas um sonho.
Eu me irritei com tudo aquilo. Bati no meu colega de classe, mas queria ter batido naquela professora. Ela me repreendeu:
- Eu já falei que é impossível! Não insista nisso! Não é possível você se tornar um pássaro! Por que você não entende isso?
Chamou minha mãe. Minha mãe ficou extremamente brava e culpou meu pai por ter me levado para voar de asa-delta e por isso devia ter me colocado aquela ideia na minha cabeça.
- Ah... o que você queria era voar de asa-delta? Por que não me explicou antes?
Ela tinha conversado com a minha mãe sobre isso.
Não sabia direito se ela queria me compreender de verdade. Talvez ela só quisesse ter uma razão para aquele meu comportamento diferente. Eu tinha dez anos, já não era uma criança que não sabia distinguir a fantasia da realidade. Distinguir o que era possível do que era impossível. Não era possível eu me tornar um pássaro de verdade. Só um milagre poderia realizar esse sonho.
Os anos foram se passando e eu não esquecia aquela professora. Pensando bem, o simples ato de tentar me fazer entender que aquele meu sonho era impossível me fez insistir ainda mais nele do que nunca. É o que chamam de teimosia.
Passado quase quatro anos, eu encontrei aqueles escritos num velho caderno na estante da minha avó. Era possível realizar um milagre se você conseguisse dobrar mil pássaros de papel. Estava escrito que cada pássaro deveria conter o nome de uma pessoa. Não contava mais detalhes.
Eu precisava mostrar a ela que eu não havia mudado. Meu sonho continuava o mesmo. Eu iria me tornar um pássaro, independente do que todos os outros me dissessem. Porém, achei bobagem eu falar agora. O que ela sabia de milagres? Ela nem sequer acreditava na palavra do homem que lhe dissera que a amava:
- O que está fazendo aqui?
Ela perguntou para o rapaz do corredor e ele respondeu:
- Eu voltei. Eu disse que ia voltar! Por que colocou o nosso apartamento à venda?!
- Eu disse que se você fosse estaria tudo acabado!
- Você não podia estar falando sério! Só estava alterada! Não podia ter levado isso adiante!
- Isso é para você não duvidar de mim!
- Isso é teimosia!
Teimosia. Levar algo adiante em que não acreditam que possa ser possível é teimosia. Só para mostrar que eles estavam errados, é teimosia.
- Você não deveria ter ido!
- Mas eu voltei!
- Isso não importa! Você foi e me deixou! Agora já é tarde!
Parem de ficar discutindo no corredor enquanto eu estou aqui. Isso é ridículo.
Ela nem sequer deve se lembrar de mim. Além de eu ter crescido, ela tinha mais de trinta alunos por sala para lembrar. Mais de cento e vinte alunos devem ter passado nesse período. Mesmo pensando nisso, quantos alunos devem ter dado trabalho para ela? Devem ter sido pelo menos uns vinte alunos encrenqueiros. E dentre esses vintes, quantos falaram para ela que queriam se tornar um pássaro quando crescessem? Pelo menos um.
- Vou marcar seu nome. Um ponto negativo.
Era isso o que ela fazia quando um aluno começava a dar trabalho na sala de aula.
Agora eu olhava insistentemente para aquela professora e pensava todas aquelas coisas que pensei dela no passado. Afinal o que eu pensava dela? Um exemplo de pessoa a ser seguido? Uma adulta madura e controlada? Nada disso. Uma pessoa comum tentando ensinar alguma coisa para um bando de crianças que ainda não sabem quase nada sobre a vida. E o que ela sabia para nos ensinar? Matemática, português, história, ciência, geografia, artes, educação física... e comportamento social. Você não pode discutir coisas particulares em público.
E se eu tentasse interromper aquela briga? Como se fazia aquilo?
“Vou marcar seu nome.”
Mais alto.
- Ei...
Uma voz mais alta!
- Ei!
Eles pararam e me olharam de repente. Antes que eles pudessem abrir a boca de novo eu consegui dizer para ela:
- Vou marcar seu nome! Um ponto negativo para você!

SAMANTHA
SEXTO PÁSSARO
FIM

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