sábado, 18 de janeiro de 2014

Conto #0003

TERCEIRO PÁSSARO

REBECCA


Eu estava em frente a uma casa velha. Tinha um tom rosado nas paredes, apesar delas serem pintadas de verde. A pintura estava descascando. Eu conseguia ver um rosto formado naquela parede.
Era a casa da minha suposta avó.
Suposta, já que eu tinha uma suposta mãe.
Não sei em quem confiar. Por que ela me disse tudo aquilo agora? Não dava para esperar eu completar dezoito anos? Ela já tinha guardado segredo por quatorze anos. Só faltava mais quatro anos. Se eu quisesse podia ir embora com dezoito e eu iria conseguir me virar muito bem.
Quatorze anos é um pouco difícil.
Trinta e um também deve ser uma idade difícil.
E sessenta e nove também.
“Becca, Rebecca, levada da Breca!”

Era o que minha avó dizia que cantavam para ela quando era criança.
Entrei na casa. Vi aquelas estantes cheias de livros. Lembro do cheiro daqueles livros cheios de poeira que me faziam espirrar toda vez que eu os folheava.
- Vovó... Becca?
Becca era o apelido dela.
Na cozinha lá estava ela, vovó Becca, cozinhando toda feliz. Ela sempre oferecia comida para gente, mesmo que a gente não quisesse, não estivesse com fome, mesmo que a gente tenha acabado de pegar comida ela nos oferecia mais. Karina Katarina tinha contado uma vez que teve uma época em que vovó Becca passou fome. A comida era escassa, e agora que a comida é farta, ela aproveita o máximo possível. E assim ela se tornou uma vovó gordinha. Gordinha, cheia de rugas, mas toda sorridente.
- Breno?
Vovó Becca não pronunciava meu nome corretamente, achava um tanto complicado ou apenas não gostava que meu nome fosse diferente, queria que fosse Breno.
- Olá vovó...
- Aconteceu alguma coisa com a sua mãe?
- Não...
- Você sempre vem aqui com essa carinha quando acontece alguma coisa entre vocês. O que foi que aconteceu dessa vez?
- Nada.
- Nada? Sei...
- Só vim aqui para te ver.
Vovó Becca sempre mantinha a casa com a porta aberta. Parecia um tipo de sítio. Havia vários cachorros. Uma dúzia deles rondando pelo terreno e dentro da casa. Só que ao passar dos anos os cachorros foram diminuindo. Meu avô criava eles. Depois que ele faleceu, a minha avó cuidou deles como pode, porém ela já não era mais tão jovem e cheio de energia. Alguns cachorros morreram doentes, outros porque comeram algum veneno de rato, outros atropelados e outros pela velhice. Restaram apenas três. Todos vira-latas. Um cachorro grande, preto e com pelo curto. Um cachorro médio de tom marrom e pelo também curto. E um último pequeno com pelo longo, alaranjado, rabo espichado e enrolado.
Sentei numa cadeira velha. Todos os móveis da casa estavam velhos e com aspecto sujo.
- Não quer me contar? Vamos! Fale para a vovó Becca o que aconteceu.
- Nada vovó...
Deitei minha cabeça na mesa. Olhei para o lado. Estava vindo o Duque, o cão pequeno que me lembrava um leãozinho. Sentou perto de mim e ficou olhando para cima.
- Vovó, quando você era criança... como era?
- Quando a sua mãe era criança? Bem, ela era complicadinha. Ficava emburrada assim como você. Chocho, chochinho, com a cabeça deitada na mesa.
Ás vezes, vovó Becca só queria ouvir e falar o que lhe convinha. Não adiantava falar e repetir a pergunta. Ela continuava a contar a mesma coisa. Também não adiantava ficar bravo com ela e berrar. Parecia que ela não ligava, mas talvez ela ficasse chateada com isso. Depois pensei nessa possibilidade e parei de gritar com ela. Minha mãe já fazia isso com ela. Seria ruim se eu também fizesse. Ela estava ficando velha e estava ficando solitária. Comecei a pensar nessas coisas há alguns anos. Aquela casa tinha uma aparência de tristeza. As cores estavam se apagando.
- Vou me deitar um pouco querido. Não esqueça de fechar a porta antes de sair. Não fique chateado com sua mãe. Ela faz as coisas pensando no seu bem. Ela te ama querido. Ela te ama. Eu também te amo muito.
Não disse nada. Não pude dizer nada. Não sabia o que dizer. Não sabia o que era melhor dizer naquele momento.
A história que vovó Becca me contou uma vez era assim:
as crianças da vizinhança, por causa de um programa de televisão começaram a cantar:
“Becca, Rebecca, levada da Breca!”
Ela contava que não gostava daquilo. Era uma provocação. O cabelo dela era enrolado e ruivo num tom laranja. Ela era a mais diferente das outras crianças. Mas as crianças não ligam tanto para as coisas, logo ficam de bem e começam a brincar. O que ela mais brincava era de pique-esconde.
Um dia quando eles estavam brincando, todo mundo correndo, um menino, aquele que começou a cantar a tal música para ela, caiu de um barranco, mas ninguém viu quando isso aconteceu, só ouviram o som de um deslize e um grito. Quando pararam para olhar o que havia acontecido não o viram mais. Imediatamente acharam que ele havia caído do barranco. Chamaram por ele. Ele não respondeu. Chamaram os pais. Procuraram por ele. Não o encontraram.
Esse foi um episódio muito misterioso. E ficou na lembrança da minha avó, eu acho, porque era a história que ela mais contava.
“Becca, Rebecca, levada da Breca!”
Acho que ela começou a escutar daquele barranco.
“Becca, Rebecca, levada da Breca!”
Minha avó não ficava muito tempo em um lugar. Logo se mudaram, então ela não soube se tinham encontrado o corpo daquele menino. Vivo ou morto.
“Becca, Rebecca, levada da Breca!”
Não fui embora. Antes fiquei observando ela dormindo. O quarto dela não tinha porta. Nem armário. Apenas uma cama de casal e uma vara com cabides e roupas penduradas.
“Becca, Rebecca, levada da Breca!”
Uma respiração fraca, silenciosa. Cada vez mais silenciosa. Eu queria chorar. As lágrimas não saiam.
- Eu vim me despedir.
Sussurrei.
- Adeus vovó Becca... quer dizer... adeus...

REBECCA
TERCEIRO PÁSSARO
FIM

PÁSSAROS RESTANTES: 0997

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